A artista que denuncia uma “sensação de uma apatia política muito grande” em Angola diz que faltam “ideias e programas políticos” e considera que “ficou claro”, que a saída de José Eduardo dos Santos “não bastava”.
Em entrevista ao programa Ensaio Geral, da Renascença, a cantora que pediu uma música emprestada ao fadista Ricardo Ribeiro para gravar no seu novo disco, fala do álbum.
Aline Frazão diz que gosta do seu lado “impuro” na música. “Uma Música Angolana” é um disco de misturas com “uma espécie de festa dentro”, que nasceu por oposição ao clima que a pandemia impôs.
“Uma Música Angolana” é o seu novo disco que sai dia 4 de março. A pandemia ajudou a que o disco nascesse?
Qualquer autor acaba por refletir nos seus trabalhos uma certa visão do mundo. Uma relação com os tempos que vivemos. Acho que o disco estará também relacionado com a questão de ausência de espetáculos, dos palcos e de contato com outros músicos, amigos e familiares. Mas não penso que seja uma ligação direta.
Porquê?
Acho que é uma relação indireta, um bocado por oposição. Acaba por ser um disco de uma grande celebração. Este disco, tem uma espécie de festa dentro. Sinto mesmo que na produção do álbum com os músicos, e em estúdio, e das primeiras reações que vou tendo, é um álbum festivo, com muita vitalidade. Acho que isso pode ser uma resposta à pandemia e uma certa esperança de que a música, principalmente a música ao vivo, possa ser um escape. Estamos todos a precisar de retomar alguma esperança, alguma normalidade, alguma confiança no futuro. Esse disco, tem esse tom de celebração e talvez seja eu a querer viver a música dessa maneira. A música para mim funciona como uma salvação. Nos últimos dois anos apercebi-me de quão importante isso é para mim.
Ao ter este título "Uma Música Angolana" pode enganar o ouvinte, achar que só tem um estilo de música, mas este é um disco muito diversificado, com muitos ritmos. É esse o seu lugar na música? As múltiplas influências?
Sempre foi o meu lugar na música. Sempre me diverti com essa mistura de ritmos, uns ritmos impuros. Mesmo quando estamos a tocar uma Semba, Rebita, Maracatu do Brasil ou Afoxé, o Batuque de Cabo Verde - que são ritmos que me são muito próximos, muito caros - nunca é o ritmo puro, tradicional. Sempre é o ritmo transformado e reinterpretado e tocado do nosso jeito. Misturado. A linguagem do jazz e essa liberdade que tem o jazz atravessa todos esses ritmos e o meu trabalho. Faço isso com muito gosto porque me considero assim, um pouco impura e misturada.
Tem várias influências.
Apesar de eu ser luandense, angolana e de ter escrito este disco desde Luanda, ele foi gravado em Almada, em Portugal. Eu sou uma pessoa que navega entre lugares muito diferentes. Não só por ter morado em países como Portugal, Angola, Espanha e viajar muito, mas mesmo afetivamente. Tenho uma ligação muito forte com o Brasil, com Cabo Verde que é a terra do meu avô. Eu nunca me quis limitar muito e considero isso algo muito angolano. Talvez daí venha o título. Considero Angola muito aberta, onde se houve música de todas as partes do mundo. Acho que a própria música angolana se carateriza por esse lado impuro.
Tem vários músicos a participarem neste disco. Que parcerias são estas?
Como produtora musical, uma das coisas mais importantes para mim neste trabalho era a banda. Que ela fosse o coração musical do disco. Entrou o Marcelo Araújo, baterista nascido no Brasil e que vive em Portugal, o Mayo que é um baixista angolano, o Marco Pombinho pianista português, o Diogo Duque no trompete também aqui de Portugal e Yasmane Santos que gravou desde Luanda e que é um músico percussionista cubano.
Tem também artistas convidados.
O Nástio Mosquito, um grande amigo, meu parceiro e que me inspira muito. Ele é artista e performer cantor. O Vitor Santana de Belo Horizonte, é também um cantor que admiro muito. Susanne Paul que é uma violoncelista de Berlim que também faz parte de um projeto de jazz no qual participo na Alemanha. Depois na composição houve algumas pontes. Gravei uma música do Paulo Flores que se chama "Fumo". Tem uma música do João Pires e da Teresa Marques e uma música do Ricardo Ribeiro que é um poema do Pedro Homem de Melo que eu adoro que é a "Valsa da Libertação".
O single do disco é este tema "Luísa". É uma canção sobre várias ‘Luísas’, sobre várias mulheres?
São muitas. É uma Luísa fictícia, é uma personagem que surgiu em forma de canção. O nome vem da música do Tom Jobim "Luíza". Sempre fiquei com esse nome na cabeça. Neste caso, Luísa é inventado e baseado em muitas mulheres que me inspiram. Revejo muitas mulheres nesse lugar, que usam a voz para trabalhar, passar ideias, criar. E essa sensação de insegurança, de lidar mal com a imperfeição. É uma canção que tenta ser uma mensagem de força.
A defesa dos direitos das mulheres é uma marca da sua presença pública. Como vê a atual condição das mulheres em Angola?
São muitas as formas de ser mulher em Angola. Obviamente que vivemos numa sociedade machista, em Angola e não só. Com muito trabalho para fazer ao nível da igualdade de género. Há muitas diferenças entre as mulheres angolanas, a nível de classe, cor de pele, de status social. Angola é um país extremamente desigual. As mulheres de Luanda não têm a mesma situação das mulheres do interior do país. Há uma multiplicidade, mesmo com as mulheres cantoras. Há muito menos espaço e é muito mais difícil construíres uma carreira profissional como mulher na música, na literatura ou nas artes. Há muito caminho para fazer, mas felizmente há quem esteja a trabalhar para isso como a Ondjango Feminista que é a única associação feminista angolana, da qual faço parte, e que há 5 anos tenta fazer esse trabalho de transformação social. Não está tudo adormecido, há quem esteja com as mãos na massa para dar volta à situação.
E em termos políticos. Como está Angola hoje?
É um ano eleitoral e de águas agitadas. Vamos ver o que acontece no final do ano com as eleições. Angola está numa situação profundamente fragilizada a nível económico e social neste momento, com a dependência que temos do petróleo, o endividamento do país, com a corrupção e com os anos desperdiçados em que havia dinheiro e que não se investiu isso a nível da justiça social. Tentar realmente transformar a vida dos angolanos. Isso não foi feito!
Há muito endividamento?
Já não se houve falar tanto de Angola, e isso é porque já não há tanto dinheiro. Há muita dívida e muita precariedade. A sensação é de uma apatia política muito grande. Acho que agora que houve uma mudança, que saiu José Eduardo dos Santos, ficou claro que isso não bastava. O que faz falta são ideias, programas políticos, são partidos a sério. Isso não existe em Angola! A oposição tenta fazer um trabalho louvável, mas há um vazio muito grande de pensamento político. Isso tem consequências muito graves. É uma situação muito complicada. A pandemia veio agravar isso e acho que faz falta um maior sentido crítico de pensamento político, de se priorizar as questões sociais e os recursos naturais que o país ainda tem e que não são o petróleo.
E qual o poder da música nessa mudança?
Não sei se tenho uma resposta. Acho que a música, e as artes em geral, têm uma força muito grande para de uma forma às vezes subtil, gerar reconhecimento. As pessoas podem por exemplo reconhecer-se nessa canção "Luísa". Tem uma mensagem feminista e política. Acho que a música com esse seu jeito chega longe. Foi fundamental a acompanhar as mudanças dos tempos, na luta dos negros americanos por exemplo, ou em Portugal no 25 de abril. A música marca e acompanha as épocas. Ajuda a resumir o pensamento e as necessidades de mudança. Por mais que a música seja hoje, cada vez menos isso, ainda existe um espaço no coração e na vontade das pessoas para que a música seja isso.
Radio Renascença