Eduardo dos Santos escreveu depoimento deixando general "Dino" fora dos negócios do CIF

O ex-presidente angolano José Eduardo dos Santos deixou escrito um depoimento, em novembro de 2021, ilibando o general “Dino” dos negócios do China International Fund (CIF), sendo o ex-vice-presidente Manuel Vicente o responsável por acompanhar os dossiês desta entidade.

A declaração de José Eduardo dos Santos, a que a Lusa teve acesso, surge após as tentativas frustradas de ser ouvido presencialmente pelas autoridades angolanas, no âmbito do processo que envolve dois dos seus antigos homens de confiança, os generais Leopoldino Fragoso do Nascimento (“Dino”) e Manuel Helder Vieira Dias (“Kopelipa”).

No depoimento, o antigo presidente menciona o propósito de “contribuir para a verdade material dos factos”, relatando a sua versão sobre os acontecimentos que levaram o Ministério Público angolano a acusar os seus antigos colaboradores dos crimes de associação criminosa, branqueamento de capitais, peculato e falsificação de documentos e de terem lesado o Estado angolano em centenas de milhões de euros.

No documento consultado pela Lusa, José Eduardo dos Santos refere que foi promovido, após o fim da guerra, em abril de 2002, um Programa de Reconstrução Nacional recorrendo à cooperação externa com vários países, em particular com a República Popular da China, através de instituições governamentais, entes públicos e empresas privadas, entre as quais o grupo China International Fund, também referido na acusação.

O programa previa um memorando de entendimento entre o CIF e o Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN), liderado pelo general “Kopelipa”, que segundo o depoimento do antigo presidente, que morreu na sexta-feira em Barcelona, Espanha, “atuou em conformidade” com as leis e sob orientação do titular do poder executivo.

O GRN, ao qual cabia a função de implementar “programas de âmbito económico, produtivo e social, estruturantes para a reconstrução e desenvolvimento de Angola”, contava com o CIF como parceiro no que diz respeito à cooperação e desenvolvimento de infraestruturas e serviços, bem como reforço da capacidade empresarial e investimento privado, de acordo com o memorando entre as duas entidades.

No entanto, José Eduardo dos Santos esclareceu que o memorando nunca esteve destinado a servir de suporte legal para entendimentos conducentes ao estabelecimento do Fundo de Reconstrução Nacional/China Sonangol International Holding Limited (China Sonangol), de contratos de petróleo entre a Sonangol-EP e China Sonangol, financiamentos entre estas entidades, e empréstimos GRN e China Sonangol.

O depoimento do ex-presidente explica que foi designado o então presidente da Sonangol, e posteriormente ministro de Estado da Coordenação Económica e vice-presidente, Manuel Vicente, como coordenador da cooperação com o CIF.

Esta relação de cooperação permitiu ao CIF aceder a terrenos para implantação dos seus projetos de investimento privado com a obrigação de a empresa “proceder à regularização a posteriori dos terrenos cedidos”, sendo atribuída também a Manuel Vicente a responsabilidade de acompanhar a implementação de projetos públicos e de investimento privado do grupo.

José Eduardo dos Santos salienta, no entanto, que na implementação do memorando de entendimento nunca foi aprovada por si a participação pelo GRN na assinatura e execução de contratos de compra e venda de petróleo entre a Sonangol e a China Sonangol (vários milhares de barris/dia, avaliados em biliões de dólares) cujos recursos financeiros estariam supostamente destinados a financiar a reconstrução nacional, nomeadamente através dos projetos do CIF.

No depoimento realçou também que nunca aprovou a promoção e concessão de crédito pelo GRN à China Sonangol, nem a construção pelo GRN de vários edifícios entre os quais o CIF Luanda One e Luanda Two, que seriam projetos de investimento imobiliário privado.

O ex-chefe de Estado escreveu que aprovou, contudo, a prestação pelo GRN de apoio aos projetos de investimento imobiliário privado de empresas angolanas e estrangeiras em Luanda (entre os quais o projeto das centralidades do Zango, Vida Pacífica e Habitações Sociais do Kilamba Kiaxi), bem como a assinatura em 12 de setembro de 2007 de um contrato para construção de urbanizações no Zango (22 edifícios de 15 andares), tendo as partes acordado um pagamento inicial de mais de 55 milhões de dólares.

Em abril/maio de 2010, após o diretor do GRN cessar funções e o órgão ser extinto o projeto passou para a responsabilidade da Sonangol/Sonip.

Entretanto, face aos “sérios problemas empresariais” que o CIF atravessava, deixando o seu “vasto património imobiliário” ser alvo de vandalismo e roubos, e tendo em conta que era uma empresa “que muito contribuía para a reconstrução nacional, incluindo para a criação de empregos”, Eduardo dos Santos decidiu, segundo testemunhou, convidar o general “Dino” e o jurista Fernando Santos (também acusado pelo Ministério Público angolano) “para formarem uma equipa e fazerem um diagnóstico” destes projetos de investimento.

O ex-presidente pretendia um inventário do que estava abandonado e a deteriorar-se, “bem como regularizarem todas as suas obrigações perante o Estado angolano”, nomeadamente a legalização de todos os empreendimentos e bens do CIF para que na ausência da empresa ou seus representantes, e sem titular do direito de propriedade, o Estado angolano “fosse alvo de uma ação futura de indemnização por dano eminente e lucro cessante, sem que estes tivessem qualquer relação ou interesse na sociedade em causa”.

Eduardo dos Santos indicou que o general “Dino” formou e liderou uma equipa com vários técnicos especializados para auxiliar neste processo, ilibando-o dos negócios mantidos com as empresas chinesas.

“As razões que estiveram na origem da ausência dos proprietários do CIF Ltd e da CIF Lda não são do conhecimento do aqui declarante, no entanto, reafirmou aqui e agora que os senhores tenente-general Leopoldino Fragosos do Nascimento e Dr. Fernando Santos nada têm a ver com a empresa CIF Ltd. e desconhecem a origem dos fundos investidos nos projetos em causa, sendo esta da responsabilidade única e exclusiva dos proprietários do CIF Ltd.”, garantiu.

Segundo a acusação do Ministério Publico angolano, a China International Fund, Limited "apropriou-se dos 24 edifícios do Estado, construídos pela empresa Guangxi na centralidade do Zango O, contratou a empresa Delta Imobiliária, que os vendeu à Sonangol, EP, através da Sonip, Lda, mediante orientação do engenheiro Manuel Domingos Vicente, pelo valor global” de 475, 3 milhões de dólares.

A Delta Imobiliária, que assegurou a venda dos edifícios será “propriedade do engenheiro Manuel Domingos Vicente e dos arguidos Manuel Hélder Vieira Dias Júnior e Leopoldino Fragoso do Nascimento, através do Grupo Aquattro", acrescenta o documento.

Nesta acusação Manuel Vicente, antigo vice-presidente de Angola é referenciado por diversas vezes, tendo sido sob a sua égide, como presidente do conselho de administração da Sonangol, que começaram, em 2004, os negócios com empresários chineses.

Manuel Vicente estaria encarregue das relações que envolviam petróleo, enquanto as tarefas ligadas à Reconstrução Nacional e outros tipos de investimentos ficaram ao cuidado de “Kopelipa”, de acordo com a acusação.

No âmbito desta divisão de tarefas, foi criado o GRN, na dependência do Presidente da República, na qualidade de chefe do Governo, tendo sido nomeado para seu diretor, por decreto presidencial, “Kopelipa”, função que exerceu até 2010, acumulando-a com a de ministro de Estado e chefe da Casa Militar do Presidente da República.

Manuel Vicente e o seu diretor de gabinete, José Pedro Benge, também faziam parte do GRN, mas "apenas no âmbito do acompanhamento em função da cooperação com a China, sem responsabilidades na execução de projetos, que eram exclusivos do próprio GRN", lê-se no documento do Ministério Público.

Os chineses investiram, assim, nas centralidades que o Governo angolano queria desenvolver, contratadas pelo GRN e pagas pela Sonangol com fundos próprios.