José Eduardo dos Santos. O arquiteto da paz que começou por se fingir de morto

Será que a literatura pode ajudar a compreender a realidade? Claro que sim. Veja-se o conto O Bom Déspota, publicado em 2014 pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa, na revista Granta. “Durante os primeiros anos fingi-me de morto.

Deixei que me vissem como um fiel herdeiro do falecido Presidente e, ao mesmo tempo, fui libertando sem alarde os fracionistas que haviam sobrevivido aos fuzilamentos e aos campos de concentração. Nomeei alguns para importantes cargos governamentais. Nunca mais criaram problemas.” O protagonista desta descrição ficcionada é José Eduardo dos Santos (Zédu), que conta na primeira pessoa a estratégia que usou para se fixar no poder, quando foi escolhido para Presidente de Angola, a 20 de setembro de 1979, 10 dias depois da morte do primeiro chefe de Estado do país, Agostinho Neto.

Eduardo dos Santos era então visto como uma solução de curto prazo, um intervalo até os dirigentes do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) se entenderem na nomeação de um líder forte. “Passado o transe começou então a falar-se insistentemente nas diversas hipóteses para ocupar o lugar deixado vago por Neto: Lúcio Lara? Ambrósio Lukoki? Pascoal Luvualu? José Eduardo dos Santos? José Eduardo dos Santos era demasiado enigmático. Pouco se lhe ouvia falar”, uma característica que o ajudou. “Todos pensaram que facilmente o poderiam influenciar. Os outros potenciais candidatos à sucessão de Agostinho Neto possuíam perfis polémicos, ou eram demasiado previsíveis”, lembrou Justino Pinto Andrade, fundador do MPLA, ao site Esquerda.net, em 2013. Enganaram-se os que previam uma liderança efémera. O transitório passou a definitivo e José Eduardo dos Santos acabou por se impor no intricado tabuleiro estratégico angolano.

Ao longo de 38 anos, Zédu tornou-se uma figura reverenciada e também temida. Construiu uma robusta teia de poder com o apoio do seu mais fiel colaborador e braço direito, o general Hélder Vieira Dias (Kopelipa) e de outros incondicionais, caso do general Leopoldino Fragoso do Nascimento (Dino), este mais ligado à área empresarial.

Florentino e maquiavélico

Face a esta arquitetura de governação, assente no poder de um homem só, não foram faltando adjetivos para o classificar, tais como prepotente, autoritário e déspota. “Cada um é livre de fazer o seu julgamento sobre a minha pessoa. Eu não gosto de falar de mim.” Foi

assim que José Eduardo dos Santos respondeu a José Eduardo Moniz, numa entrevista concedida à RTP em janeiro de 1990, questionado sobre o facto de ser um político com um perfil mais europeu do que africano. E não vacilou quando o jornalista o confrontou com a seguinte descrição: “um estadista completo, florentino, mas também maquiavélico”. As imagens mostram José Eduardo dos Santos a rir e a responder candidamente: “Não sei, não acho.”

A verdade é que mesmo quando cedeu a presidência da República a João Lourenço (JLO), Eduardo dos Santos pensou que ia manter um ascendente sobre o seu sucessor. Um episódio ocorrido após a tomada de posse de JLO, a 26 de setembro de 2017, valida a tese da sua natureza maquiavélica enquanto governante. Findo o banquete e logo após o início do baile, Lourenço conduziu Eduardo dos Santos à saída do Palácio da Cidade Alta, e, em conversa de circunstância, pediu-lhe o número de telemóvel para o contactar no caso de necessitar de um esclarecimento mais urgente ou profundo dos dossiês que herdou. Zédu ditou um número, JLO anotou e mais tarde, com espanto, verificou que o contacto que lhe tinha sido dado era o do general Dino. Nessa altura, João Lourenço percebeu que não tinha muito tempo se queria impor-se como Presidente. Ou seja, urgia que fosse rápido e implacável, tal como José Eduardo dos Santos havia sido há 38 anos.

Daniel Metcalfe, jornalista, autor de Dália Azul, Ouro Negro – Viagem a Angola escreve que em certos meios José Eduardo dos Santos era conhecido como “o mágico”. Porquê? “Em virtude do seu talento místico para tirar da cartola dinheiro, concessões ou oportunidades de negócios e redistribuí-los”, o que explica, em parte, a estabilidade existente em Angola, sobretudo após a paz alcançada em 2002.

Na verdade, depois da independência, em 1975, Angola nunca conheceu a paz. Primeiro lutaram MPLA, União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) e Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). A FNLA, liderada por Holden Roberto, revelou-se o elo mais fraco e esfumou-se. O MPLA consolidou-se no poder, obteve reconhecimento internacional, mas a UNITA, de Jonas Savimbi, manteve uma feroz luta armada. Numa primeira fase, antes da independência, apoiada pela China, e depois por países como a África do Sul e os Estados Unidos, fruto do ambiente de guerra fria que se vivia e que, no caso de Angola, se consubstanciava no apoio da União Soviética e de Cuba ao MPLA.

Neste contexto adverso, José Eduardo dos Santos foi cimentando a sua liderança e o esforço de guerra era alimentado com a receita petrolífera. E, em paralelo, clamava pela paz. No início da década de 90, já num ambiente de pós-guerra fria, parecia que Angola ia virar um capítulo da sua história. Assim aconteceu, mas o desfecho não foi o esperado. Em maio de 1991, com o Governo de Cavaco Silva como anfitrião e o então secretário de Estado da Cooperação, Durão Barroso, como estratega, José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi assinam na Escola Superior de Hotelaria do Estoril os chamados acordos de Bicesse que contemplam a realização, em 1992, das primeiras eleições livres e democráticas em Angola, monitorizadas pelas Nações Unidas e que todas as forças beligerantes seriam integradas nas Forças Armadas Angolanas, cabendo a Portugal, através das suas próprias forças armadas, ministrar a formação necessária.

Uma paz que não durou

Numa versão resumida, a ida às urnas materializou-se efetivamente a 29 e 30 de setembro de 1992, a UNITA contestou os resultados que davam a vitória ao MPLA, considerando as eleições fraudulentas, e a guerra civil voltou a tomar conta do país.

A UNITA ainda se manteve pujante, sobretudo graças às receitas obtidas com a venda de diamantes que lhe permitiam armar-se, mas foi perdendo apoios externos. Militarmente, o movimento do Galo Negro foi definhando. Além disso, a UNITA sofreu cisões, tendo sido criada a UNITA Renovada, a qual acabou por aceitar participar no Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN) de Angola. Em sentido inverso, o MPLA ia arregimentando novos apoios de cariz militar, por exemplo, provenientes de França e Israel, apertando cada vez mais o cerco a Savimbi. O epílogo deu-se a 22 de fevereiro de 2002, perto do Lucusse, na província de Moxico, quando Jonas Savimbi é morto pelas Forças Armadas Angolanas.

É aqui que José Eduardo dos Santos ganha o epíteto de “arquiteto da paz”. Em vez de autorizar o aniquilamento físico dos homens que ainda acompanhavam Savimbi – uma solução muito comum noutros conflitos africanos –, o Presidente angolano ordenou que fossem transportados para Luanda, recebendo proteção e todos os tratamentos médicos necessários. Mais tarde, estes homens foram integrados nas forças armadas do país. Dezasseis anos depois, em 2018, já com Eduardo dos Santos afastado da presidência, o MPLA continuava a tecer-lhe loas. Como esta. “Honra seja dada ao arquiteto da paz, camarada José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA, que, nos momentos mais adversos da história recente de Angola, soube manter a serenidade, impondo a vitória do bem sobre o mal e, desta forma, propiciar, com o seu alto sentido patriótico e aglutinador, uma genuína reconciliação entre irmãos, outrora desavindos.”

O “bom patriota”

Em 2017, quando Eduardo dos Santos assumiu a sua saída da presidência, a interrogação “como é que a história o julgará?” tornou-se obrigatória. Uma boa resposta foi dada então pelo jornalista Nicolau Santos, atualmente presidente da RTP. “Essa é a pergunta que só terá resposta daqui a quatro ou cinco décadas, quando a distância permitir perceber as múltiplas nuances do seu longo reinado. Mas todos os aspetos positivos serão valorizados se Angola fizer uma transição suave e se for aprofundada a frágil democracia que se vive no país – e toda a análise lhe será desfavorável se Angola mergulhar numa convulsão política, económica e social. O tempo se encarregará de dar a resposta.”

José Eduardo dos Santos também tinha uma resposta para esta questão e deu-a em 2013, numa entrevista a Henrique Cymerman. Quando o correspondente da SIC em Israel lhe perguntou como gostaria de ser recordado na história, Zédu não hesitou: “Como um bom patriota.” SABADO