Navio pesqueiro angolano “roubado” na unidade da Polícia Fiscal é capturado na Espanha com cocaína

Um navio de pesca por arrasto de bandeira nacional, baptizado com o nome de ‘Simione’ — dado como ‘furtado’ em Novembro do ano passado, quando se encontrava sob a protecção da Polícia Fiscal angolana —, foi capturado pela Guarda Civil de Espanha, nas Ilhas Canárias, com 3.300 quilos de cocaína no convés.

Depois de ter cumprido um longo itinerário de perto de 3.500 milhas náuticas — entre Luanda, Gabão, Senegal e Espanha, portos onde a embarcação pesqueira chegou a atracar —, o Simione acabou fretado no Senegal, por uma organização galega ligada ao narcotráfico, com a finalidade de o enviar para um ponto indeterminado do Atlântico, como se fosse uma das centenas de barcos pesqueiros galegos.

A Guarda Civil espanhola, que já andava no encalço da organização, fruto das investigações às idas e vindas dos membros da organização por África, montou uma operação que contou com a colaboração das autoridades senegalesas, mas também da agência anti-drogas norte-americana (a conhecida DEA) e da Agência Nacional Anti-crime do Reino Unido.

Além de se tratar de uma embarcação furtada em Angola, uma outra coincidência que salta à vista é o facto de a quantidade de cocaína apreendida no navio Simione, nas Ilhas Canárias, assemelhar-se à capturada pelo SIC, no Porto de Luanda, em Setembro de 2022, e cujo destino até hoje as autoridades angolanas não souberam explicar publicamente.

O que se sabe, entretanto, é que a operação no Porto de Luanda acabaria por custar caro a todos os efectivos do SIC que nela estiveram envolvidos, desde o responsável ao pessoal administrativo. O !STO É NOTÍCIA sabe, inclusivamente, que, após a apreensão da elevada quantidade de cocaína (três toneladas), por ordens não se soube de quem, a equipa ali destacada foi toda substituída.

Navio era dado como furtado em Luanda

A notícia da apreensão da droga e, por conseguinte, do Simione, avançada pelo jornal espanhol El País, ajuda a compreender algumas ‘pontas soltas’ do até então “misterioso sumiço” do navio pesqueiro, que, desde o dia 31 de Outubro passado, se encontrava “estacionado” na unidade da Polícia Fiscal da Ilha do Cabo, em Luanda, na sequência de um mandado de busca, revista e apreensão emitido pelo Ministério Público junto do SIC.

De cor preta e risca vermelha, com a chapa de matrícula 0022-26/29/SIM/2010, o navio Simione já era, à data do seu desaparecimento, objecto de um litígio, envolvendo as empresas Edison Nog (SU), Lda., e a Cuane Orimara, Lda., representadas, respectivamente, pelo cidadão chinês Lou Lin e pelo angolano Afonso Francisco Manuel.

Contrato de exploração do ‘Simione’

Em Agosto de 2020, ambas as empresas chegaram a um acordo para que o navio passasse à gestão do empresário chinês Lou Lin. No contrato assinado por ambas e ao qual este portal teve acesso, a empresa Edison Nog (SU), Lda., comprometeu-se a fazer um investimento financeiro para a reparação e manutenção da embarcação, que se encontrava num estado bastante avançado de degradação.

O valor investido, para a recuperação do navio chegou a atingir os 329.468.444,00kz (trezentos e vinte e nove milhões, quatrocentos e sessenta e oito mil e quatrocentos e quarenta e quatro kwanzas).

Rompimento do contrato

Entretanto, em Outubro do ano passado, isto é, após dois anos de actividade, o representante da empresa Cuane Orimara, Lda., Afonso Francisco Manuel, deslocou-se ao Porto Amboim, na província do Kwanza-Sul, onde se encontrava o navio Simione em serviço, e decidiu, unilateralmente, romper com o contrato, alegando não quer mais trabalhar com o empresário chinês, sem, no entanto, avançar mais pormenores.

Recorrendo aos Serviços de Migração e Estrangeiros (SME), Afonso Francisco Manuel começou por alegar que a tribulação se encontrava em situação migratória irregular, o que levou a que aquele órgão convidasse os membros da mesma a abandonar o navio para que fossem verificados todos os documentos pessoais e migratórios.

Depois de abordada e ter-se verificado que tudo não se passava de um equívoco, a tripulação já não pôde voltar ao navio, uma vez que o empresário Afonso Francisco Manuel se negou a permitir que tal acontecesse, tendo, de seguida, colocado uma outra tripulação no comando da embarcação.

Queixa-crime

Resignado, o empresário chinês, que, à data dos factos também se encontrava no Porto Amboim, decidiu regressar a Luanda, onde abriu uma queixa-crime contra a empresa Cuane Orimara, Lda., com a qual havia firmado um contrato de exploração da embarcação Simione.

É na sequência deste processo, desencadeado junto do SIC Luanda, que a magistrada do Ministério Público emite um mandado de busca, revista e apreensão do navio; mandado esse executado no dia 31 de Outubro de 2022, quando o navio já se encontrava em Luanda, na zona do Porto Pesqueiro, no município do Cacuaco.

Como era objecto de litígio, e não dispondo o SIC de um parque onde pudesse colocar a referida embarcação, o navio Simione foi encaminhado para a unidade da Polícia Fiscal, na Ilha do Cabo, onde lá ficou sob a guarda desta, enquanto decorria o processo intentado pela empresa Edison Nog (SU), Lda.

O ‘estranho sumiço’ do navio na Polícia Fiscal

No dia 28 de Novembro de 2022, isto é, um mês depois de o navio ter sido apreendido, a mesma magistrada do Ministério Público que ordenou o mandado de busca, revista e apreensão do navio, mandou emitir um ‘termo de entrega’, a favor do empresário chinês Lou Lin, constituindo-o como ‘fiel depositário’ da embarcação.

Nesse mesmo dia, o Serviço de Investigação Criminal, juntamente com o empresário chinês, deslocou-se à unidade da Polícia Fiscal da Ilha do Cabo, e, para o espanto e surpresa de todos, o navio Simione já lá não se encontrava.

Estranhamente, nem o comandante da unidade, nem mesmo os efectivos da Polícia Fiscal sabiam dizer onde se encontrava a embarcação. Aliás, o próprio comandante da unidade chegou a afirmar que nem sequer manteve contacto visual com a mesma, quando, na verdade, a embarcação havia sido deixada defronte à janela do seu gabinete de trabalho.

Caça ao navio

A partir desse momento, o SIC intensificou as investigações, arrolando todos os intervenientes, e principalmente o representante da empresa Cuane Orimara, Lda., Afonso Francisco Manuel, que, ao que apurou o !STO É NOTÍCIA, num primeiro momento, teria admitido ter estado envolvido no sumiço da embarcação. Versão invertida logo a seguir.

Contactado por este portal em Dezembro passado para reagir à matéria do desaparecimento do navio, Afonso Francisco Manuel negou prestar declarações, alegando não estar “autorizado” pelo seu responsável —Orlando André Bento da Graça — a falar com a imprensa, quando, à luz do contrato, era ele a pessoa que respondia pelo navio, inclusive sobre o processo junto do SIC.

Destino: Gabão, Senegal e Espanha

Já no mês de Dezembro, fruto de um contacto mantido com o exterior do país, a empresa Edison Nog (SU), Lda., conseguiu a primeira “informação segura” sobre o paradeiro do Simione, que, nessa altura, se encontrava no Gabão.

Poucos dias depois, a embarcação zarpou Atlântico acima, atracando no Senegal, onde ficou também poucos dias, tendo-se dirigido pouco depois para a Espanha.

Porém, soube-se depois que a tripulação envolvida no furto do navio em Luanda e que a levou até ao Senegal foi substituída e deixada a ‘deus-dará’ no país africano, tendo esta recorrido, inclusive, à Embaixada de Angola em busca de ajuda para regressar à capital angolana.

Tripulação proibida de falar com o SIC

No seu regresso ao país, os membros da tripulação que levou o Simione de Luanda para o Senegal teriam, supostamente, recebido orientações do representante da empresa Cuane Orimara, Lda., Afonso Francisco Manuel, para não prestarem quaisquer depoimentos ao SIC.

Entretanto, o !STO É NOTÍCIA tentou voltar ao contacto com Afonso Francisco Manuel mas sem sucesso, porque este já não atendia a nenhuma das chamadas.

Até às últimas informações a que este portal teve acesso, o caso continuava a correr trâmites junto do SIC Luanda, onde era suposto o empresário Afonso Francisco Manuel regressar para voltar a ser ouvido.

O navio Simione, de 46 metros de comprimento, é uma embarcação com 21 anos. A Cuane Orimara, Lda., teve acesso à embarcação através da empresa Supermar, Lda., que tem um contrato de pagamento a prazo do navio Simione com o FADEPA – Fundo de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria Pesqueira e da Aquicultura, órgão afecto ao Ministério das Pescas e Recursos Marinhos.

ISTO É NOTICIA