Rafael Marques, presidente do Ufolo – Centros de Estudos para a Boa Governação e fundador do site de investigação Maka Angola é um dos mais notórios ativistas de Angola. Durante a liderança do país protagonizada por José Eduardo dos Santos, denunciou a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influências existente no país e chegou a ser condenado a seis meses de prisão em 2015. Em 2019, sinal de uma prometida mudança, João Lourenço, o atual presidente de Angola, condecorou Rafael Marques, enaltecendo quem “desde muito cedo, teve a coragem de se bater contra a corrupção crescente que acabou por se enraizar” na sociedade angolana.
Rafael Marques, em entrevista ao Negócios, no âmbito da visita do primeiro-ministro António Costa a Angola, desafia Portugal a fazer uma investigação séria sobre a Omatapalo. E sublinha: “Portugal só poderá efetivamente ajudar Angola quando esta tiver dirigentes capazes e empenhados em governar o país e não apenas em se autogovernarem com os recursos naturais”.
Como caracteriza a relação entre Angola e Portugal?
É bastante complexa, porque parte considerável da elite governante angolana também é portuguesa. Quanto mais se desgoverna Angola, mais cidadãos angolanos querem fugir para Portugal. Há política externa entre ambos os países quando há boas negociatas por fazer e quando a cooperação judicial facilita que o produto do saque em Angola, domiciliado em Portugal, sirva apenas para benefício deste país. Pelo meio há os irritantes, as subserviências, as cumplicidades e os discursos políticos ordinários.
A proximidade linguística e histórica ainda tem alguma influência nos negócios?
Angola está intrinsecamente ligada a Portugal e seria redutor analisar essa proximidade apenas pelos negócios. Talvez seja em relação a esta visão que a política externa portuguesa mais falha em relação a Angola: a obstinação exclusiva pelos negócios, quando Portugal pode fazer muito mais por Angola. Só uma Angola verdadeiramente democrática e com um bom governo trará maiores benefícios para Portugal e para muitos portugueses que também sonham com uma vida em Angola. As habituais negociatas, as políticas de saque e a fuga dos angolanos para Portugal não trazem nada de bom a nenhum dos países.
O que mudou em Angola com a saída de José Eduardo dos Santos e a chegada de João Lourenço?
A transição pacífica facilitou a quebra da hegemonia política do MPLA, que detém o poder absoluto há quase 48 anos. É um passo fundamental para a reconfiguração política do país. Do ponto de vista socioeconómico, a situação da maioria dos angolanos é desesperante, com a falta de empregos e políticas públicas que reanimem a esperança dos cidadãos. O capitão da economia é o mesmo há mais de há 25 anos, o doutor Manuel Nunes Júnior, cujas políticas servem mais para criar novos oligopólios e possivelmente muitos novos ladrões. São assustadores os níveis de incompetência, a galopante corrupção e a insensibilidade do Governo. Pela primeira vez, no pós-guerra, o Governo está a gerar uma onda de ódio na população, o que é um verdadeiro perigo para a estabilidade política do país. O presidente tem de ouvir os clamores da população e perceber porque se está a tornar no maior obstáculo ao avanço do país.
João Lourenço conseguiu vencer o combate à corrupção ou desistiu a meio?
João Lourenço parece ter sido capturado por interesses bastante mesquinhos, que melhor se descrevem com a conduta do presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, suspeito de tantos casos de corrupção, incluindo a ganância de alegadamente se ter apropriado até do negócio de limpeza dos tribunais para favorecer a empresa da sua esposa e filhos. O juiz, com a responsabilidade suprema de liderar os julgamentos dos corruptos de foro privilegiado, afigura-se hoje como o principal suspeito do novo circuito da corrupção à volta do presidente. Como se combate a corrupção com juízes corruptos que subvertem o Estado de Direito? Não é possível. O presidente foi capturado pela corrupção do seu próprio poder? É tudo muito perverso.
Existe falta de liderança política?
Temos um presidente que me parece indiferente ao sofrimento do povo e ao rumo do país. Não temos um estadista, um líder. Temos oposição, não temos opositores. Temos partidos políticos, temos equilíbrio numérico no Parlamento, mas não temos debates políticos e intervenções que promovam a defesa intransigente dos interesses do povo angolano e da boa governação. O Parlamento é uma acomodação de luxo, para um bom repouso político. Não temos liderança política. É a falta de ideias, de visão e de amor para com Angola e os angolanos.
O ciclo político do MPLA chegou ao fim?
O MPLA entrou numa fase acelerada de autodestruição política, pelas mãos do seu próprio chefe. É a ironia dos movimentos de libertação em Angola, os chamados partidos históricos. Acabam por ser politicamente destruídos mais pela conduta egocêntrica dos seus presidentes do que pelos seus adversários. João Lourenço acabou com a corrupção democrática, que era o principal pilar de estabilidade do MPLA. O MPLA só funciona com a corrupção alargada. João Lourenço acabou com isso e no seu lugar deixou criar a corrupção de circuito fechado à sua volta. Não reformou o MPLA, não fez nada com o partido para além de reforçar o seu poder pessoal. Pode acabar pior do que José Eduardo dos Santos, o seu antecessor.
A UNITA é alternativa?
A UNITA, na sua estrutura atual, é um partido obsoleto. Re- pousa sobre o seu percurso histórico e alimenta-se e bem do descontentamento popular. Aumentou o número de deputados na Assembleia Nacional e permanece amor- fá, à espera de chegar ao poder sem se reformar, sem iniciativa, sem estruturar e defender uma visão para o bem comum dos angolanos. A alternativa deve ser encontrada entre todos os angolanos que genuinamente querem e demonstram capacidade para promover o bem comum. O pais é de todos. A partidarização radical dos angolanos tem sido uma tragédia. Temos de aprender com o nosso próprio passado de autodestruição.
Que papel pode Portugal ter para ajudar Angola a concretizar o desejo de diversificar a economia?
Portugal só poderá efetiva- mente ajudar Angola quando esta tiver dirigentes capazes e empenhados em governar o país e não apenas em se autogoverna- rem com os recursos naturais. Portugal tem de ser mais exigente com a transparência nos negócios e pode começar com uma investigação séria, por exemplo, sobre a duplicidade da Omatapalo Angola e da Omatapalo Portugal, que formam hoje um dos principais oligopólios da era Lourenciana'. Para que uma em- presa mereça o beneficio exclusivo do poder, muitas outras são excluídas dos negócios com o Estado. Isso também passa por Portugal. Há sempre um timoneiro português metido na maior confusão.
As privatizações podem ajudar a trazer transparência à economia?
A transparência depende, sobretudo, da ética, da moralidade e da vontade política do presidente e de quem este nomeia para servir o país ou pelo contrário, os interesses particulares dos detentores do poder. Não há segurança jurídica em Angola que permita exigir maior transparência nos processos de privatização. Dá no mesmo: beneficiam-se apenas aqueles com ligações ao poder e os que sabem corromper. Estamos a brincar com o país. Porque, se não separarmos os políticos dos negócios, teremos uma privatização que aumenta o compadrio e o clientelismo. Por outro lado, a serem criadas as condições adequadas a processos de privatização livres de corrupção, as privatizações seriam um instrumento para atrair investimento estrangeiro, na medida em que a economia teria uma outra filosofia de gestão, mais poupança externa, mais tecnologia e, acima de tudo, ética e moral. Assim, teríamos mais liberdade de escolha, mais concorrência e o poder na economia ficaria com o povo, ou seja, o consumidor.
Diz que o epicentro da corrupção está no sistema judicial. Porquê?
Há o óbvio e conjuntural. O presidente do Tribunal Supremo, o brigadeiro Joel Leonardo, é sus- peito de inúmeras práticas corruptas, mas não se afasta nem é afastado. Há ainda o mais grave e estrutural: a Justiça deixou de funcionar e subverteu os princípios básicos do Estado de Direito. Não há respeito pela Lei, pelos Direitos Fundamentais e pela Liberdade. O que temos atual- mente são juízes impreparados que esperam orientações para decidir, que desconhecem os conceitos básicos, que se entretêm a instaurar processos disciplinares contra os colegas que discordam deles. Em resumo, não há justiça. Não havendo justiça, fica todo o campo aberto para a corrupção e a arbitrariedade. É o caminho de regresso à ditadura, para se de- fender um poder corrupto e inca- paz de governar para o bem dos angolanos.
Jornal de Negócios