José Eduardo dos Santos foi um ditador profundamente corrupto, um dos mais perniciosos governantes do continente africano do último meio século.
Numa tentativa muito lusa de aliviar tão pesada herança, não são poucos os portugueses relevantes que lhe dedicam a autoria do fim da guerra civil e o elevam na sua decisão de abandonar o poder. São quase provocadoras essas apreciações e não iludem o que de profundamente negativo teve o seu consulado.
Um comunista nunca deixa de ser um comunista. É o que confirmamos hoje no percurso pérfido de Putin. Dos Santos também nunca deixou de usar a sua cultura soviética para afirmar o partido único marxista leninista e, depois, para afirmar a sua “democracia” unipessoal.
É por isso que rejeitamos a parte benévola do homem que teria feito a paz e teria construído a democracia. Ele fez a paz em cima do cadáver do seu principal adversário e construiu o seu poder em cima de uma para-democracia caudilhista.
Em quase todo o seu consulado se certificaram as dependências através de uma estrutura cleptómana. À sua volta foram criados vários círculos de subordinados. Os seus filhos, os seus generais, os seus ministros. Todos a exaurirem os imensos recursos daquele país cheio de potencial, todos criando fortunas incompreensíveis.
Para que Luanda acolhesse as empresas portuguesas fomos fechando os olhos às participações de Isabel dos Santos em grupos nacionais estratégicos; para que Portugal ainda se fizesse valer na CPLP cedemos no Estado de Direito.
Foi Dos Santos quem obrigou os países de língua oficial portuguesa a aceitar um país onde nem 1% da população fala a língua de Pessoa e onde a pena de morte é aplicada com frequência. Para ele, todas essas questões eram menores. A Guiné Equatorial tem menos legitimidade para estar na commonwealth do antigo império manuelino do que países europeus como o Luxemburgo ou a Bélgica.
Propalar a transição como exemplar é uma afronta. João Lourenço foi feito na fábrica de pioneiros de um MPLA santista. Ao longo das décadas de partido único foi dos mais submissos do chefe. Conseguiu ir progressivamente ganhando a sua emancipação por ser um dos menos maus de todos os possíveis sucessores, talvez até aquele que melhor faria para se manter o poder dos velhos ortodoxos. Olhar para Manuel Vicente, outro dos possíveis sucessores, é olhar, ainda hoje, o descalabro da Sonangol enquanto exemplo do mais infame roubo.
O mandato de Lourenço que agora termina, foi duro e implicou longos períodos de contração da economia. E essa realidade económica somada a uma tentativa de promover alguma purificação nas estruturas das administrações angolanas, por implicação do Ocidente, fazem dele um candidato à reeleição cheio de fragilidades.
E também fazem dele o principal alvo de alguns dos filhos de Dos Santos, gente mal formada, psicologicamente aparentando doença e comprovadamente desrespeitadora do sofredor povo angolano. Os herdeiros de Dos Santos são o que mais vil apareceu por estes dias na imprensa internacional.
O pedido feito à justiça espanhola para que fosse verificado se o velho autocrata teria sido assassinado; a enunciação de um oferecimento para uma negociação com a UNITA do regresso do pai após as eleições; a clara afirmação de uma troca entre um féretro e uma amnistia, tudo demonstra a loucura que se atravessa na família do ex-ditador.
Claro está, este filme infausto cria graves problemas a Lourenço. O MPLA nunca terá estado tão perto de perder o poder e se o perder será pela mão dos comissionistas filhos do ditador.
E é perante a reivindicação de uma amnistia para filhos e amigos de Dos Santos que se verá a resistência que Lourenço garantirá no seu legado de presidente. Seja qual for o trilho que seguir nunca deixará de ser um caminho de pedras, mas perder com honra é melhor do que vencer como um helminto.
Portugal tem uma ligação profunda com Angola. Essa ligação deve fazer-se de forma adulta e respeitosa. Mas não deve deixar de assinalar que qualquer amnistia seria um retrocesso enorme que a comunidade internacional iria assinalar ruidosamente.
Dos Santos que regresse a Luanda quando a família quiser. Que os angolanos façam, com o seu funeral, o enterro de um péssimo tempo. E que todos os que no passado desapossaram o povo daquele país sejam julgados e condenados.
Por Ascenso Simões / Expresso