Para Luzia Moniz, o impasse que persiste sobre o destino do corpo de José Eduardo dos Santos, que morreu na sexta-feira passada em Barcelona, engloba a perspetiva do direito tradicional, mas o cerne da questão “é, sobretudo, política”.
“Nós olhamos para Barcelona e percebemos que Barcelona é hoje a capital de Angola, o que quero dizer é que é o local onde se está a fazer política, e mais do que isso, o que está em discussão não é apenas a entrega de um cadáver”, disse hoje Luzia Moniz à Lusa.
O “futuro de Angola” é, no entender da socióloga angolana, o cerne desta discussão que não se restringe apenas à realização de um funeral de Estado ou o provável alívio das tensões entre a família de José Eduardo dos Santos (JES) e o atual Presidente angolano, João Lourenço.
“O que está em discussão é o futuro de Angola, porque dependente de como for e onde for o funeral de JES estará também dependente disto o futuro político de João Lourenço. E se nós pensarmos nisso estaremos também a pensar no futuro de Angola”, disse.
Porque “nós não vamos ter mais campanha eleitoral, a campanha eleitoral (para as eleições gerais convocadas para 24 de agosto próximo) será esta discussão a volta do corpo” do antecessor de João Lourenço.
José Eduardo dos Santos, que governou Angola durante 38 anos, morreu numa clínica em Barcelona, Espanha, onde esteve internado há semanas em coma induzido, foi também líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), partido que governa o país desde 1975.
As autoridades espanholas anuíram a realização de uma autópsia ao seu cadáver na sequência de uma providência cautelar interposta pelas filhas, que defendem a realização do seu funeral em Barcelona.
Welwitchia “Tchizé” dos Santos é uma das filhas de José Eduardo dos Santos que reiteradas vezes critica e responsabiliza o Governo angolano, sobretudo João Lourenço, pela morte do pai.
Angola cumpre hoje o terceiro dos sete dias de luto nacional decretado pelo Presidente angolano, que criou também uma comissão interministerial para tratar das exéquias de JES, sendo que alguns membros da mesma se encontram em Barcelona para “desbloquear” o cadáver.
Luzia Moniz considera, por outro lado, que os angolanos vivem, “há muito tempo, numa contradição, pelo facto de o poder político ter adotado quase todas as leis com base ao ordenamento jurídico de Portugal, que tem como base o direito europeu e não o direito costumeiro angolano”.
“Nós abandonamos e não introduzimos na nossa Constituição o direito costumeiro, porque mesmo que JES morresse em Angola em termos de direito positivo estaríamos a passar por isso em que estamos a passar”.
“O corpo não pertence ao Estado, pertence à família, e mesmo em termos do nosso direito costumeiro pertence à família, mas mesmo no nosso direito costumeiro a família não se limita à família nuclear, que é pai, mãe e filhos, a família é ampla”, recordou.
Segundo a socióloga, “há uma subordinação etária nas nossas relações de parentesco e essa subordinação etária significa que os mais novos são tutelados ou se submetem à decisão dos mais velhos”.
Isso “significaria Isabel (dos Santos), Tchizé a submeterem-se à decisão de Marta e Luís dos Santos (irmãos de JES), mas nós não estamos perante isso, estamos perante um direito que entra em contradição com o nosso direito costumeiro”, sublinhou.
“Então, à luz desse direito o corpo pertence à família e quem decide onde levar e como fazer com o corpo, não tendo o falecido deixado nada escrito, são os filhos e o cônjuge”, frisou.
A também jornalista fez também alusão à figura de Ana Paula dos Santos, viúva de JES, “contestada pelas filhas por suposto abandono do pai”, considerando estar-se diante de “mais uma batalha para se enfrentar”.
“Elas (as filhas) ainda levantam essa questão, se aquela senhora (Ana Paula dos Santos) ainda é cônjuge, então estamos perante muitos problemas”, apontou.
“E do que sair desta questão, e seja qual for a decisão, o Presidente João Lourenço já é um derrotado, porque à luz da Constituição o Presidente João Lourenço é um dos presidentes mais poderosos do mundo”, disse.
Luzia Moniz acrescentou: “Ele (João Lourenço) tem esses poderes e os exerceu ao longo desses cinco anos, só que, ironia do destino, apesar daqueles todos poderes ele precisa da Tchizé e Isabel para sobreviver politicamente, e isso é uma derrota”.
A conhecida socióloga angolana defendeu também que João Lourenço poderia optar em abraçar a ideia do funeral de JES ser realizado apenas depois das eleições gerais, “como é pretensão de uma das filhas”, referido que este seria um “mal menor”.
Mas, “esse mal menor”, observou, é outra derrota porque João Lourenço precisa do cadáver de JES, porque na nossa cultura africana e judaico-cristã não há luto e óbito sem cadáver, é preciso o cadáver para fazermos o luto e João Lourenço precisa de politicamente disso”.
“Até porque ele vive uma guerra civil dentro do seu partido. Os “eduardistas” não são poucos dentro do país, aquelas manifestações, verdadeiramente espontâneas, pelas redes sociais de populares a chorarem com cânticos e responsabilizando João Lourenço pela precipitação da morte de JES, isso significa que o povo adotou a narrativa da Tchizé”, salientou.
João Lourenço “está em condição de desvantagem” e deveria dar sinais de distensão como liberar ‘Zenu’ (José Filomeno dos Santos, filho varão de JES) para ir ao encontro da família e não o manter como uma espécie de refém dependente do que vai acontecer”.
“Ele precisa de fazer aquilo que na nossa linguagem chamamos de “boa muxima” (dar sinais de abertura e proximidade). João Lourenço precisa de fazer “boa muxima” e então esse um sinal de “boa muxima”, libertar o Zenu para neste momento difícil estar com a família em Barcelona”, assinalou.
“O outro sinal era libertar os meios de comunicação social de forma que a voz da Tchizé passasse na televisão, porque a Tchizé é uma espécie de porta-voz dos filhos que não querem entregar o corpo a João Lourenço. Aquele discurso truculento, ameaçador não é bom”, rematou Luzia Moniz.
O Presidente angolano, João Lourenço, procedeu hoje, em Luanda, a abertura oficial de um velório público em memória a José Eduardo dos Santos, a quem sucedeu após as eleições gerais de 2017.